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A raça negra é amaldiçoada na Bíblia?

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Os negros são amaldiçoados na Bíblia? A raça negra é amaldiçoada na Bíblia?

Antes de entrarmos no tema um esclarecimento: o termo “raça” pode ser considerado politicamente incorreto para algumas pessoas. Essas pessoas preferem dizer “etnia”. Acontece que a conceito “etnia” é muito mais restrito e específico do que o conceito de raça. E convenhamos que não é a escolha de uma expressão que vai definir um caráter racista.

Mas vamos ao tema: em 2013 o pastor-deputado Marcos Feliciano causou polêmica ao declarar que os negros, de acordo com a Bíblia, são amaldiçoados. Eu vou reproduzir um trecho de uma reportagem da época:

“Citando a Bíblia […], africanos descendem de Cão [ou Cam], filho de Noé. E, como cristãos, cremos em bênçãos e, portanto, não podemos ignorar as maldições”, afirmou, na peça protocolada em seu nome pelo advogado Rafael Novaes da Silva.

“Ao comentar [no Twitter] acerca da ‘maldição que acomete o continente africano’, diz sua defesa, o deputado quis afirmar que é “como se a humanidade expiasse por um carma, nascido no momento em que Noé amaldiçoou o descendente de Cão e toda sua descendência, representada por Canaã, o mais moço de seus filhos, e que tinha acabado de vê-lo nu”.

Essa questão é muito antiga e volta e meia vem à tona. Muitas pessoas me questionam sobre isso. Os escravagistas, cristãos que eram, buscavam justificativas para manter a escravidão. Muitos estudiosos da Bíblia, no século XIX, principalmente nos Estados Unidos, defendiam essa tese de que os negros são amaldiçoados.

Essas pessoas provavelmente mentiam para si mesmas, ou seja, sabiam que aquilo que elas estavam dizendo era mentira. Mas esse não parece ser o caso do Marcos Feliciano. Sem querer defendê-lo – não é esse o caso –mas eu acho que da parte dele o que ocorre é uma interpretação equivocada da Bíblia.

Vamos começar do começo. Mesmo que você não conheça a Bíblia, você conhece a história da arca de Noé. Houve o dilúvio que cobriu toda a Terra, e Noé foi o escolhido por Deus para dar continuidade à humanidade. Isso está no capítulo 9 do Gênesis, que é o primeiro livro da Bíblia.

Vamos reproduzir a passagem que trata da suposta maldição sobre os negros:

“Os filhos de Noé, que saíram da arca, foram Sem, Cam e Jafé; Cam é o pai de Canaã. São eles os três filhos de Noé; e deles se povoou toda a terra. Sendo Noé lavrador, passou a plantar uma vinha. Bebendo do vinho, embriagou-se e se pôs nu dentro de sua tenda. Cam, pai de Canaã, vendo a nudez do pai, fê-lo saber, fora, a seus dois irmãos. Então, Sem e Jafé tomaram uma capa, puseram-na sobre os próprios ombros de ambos e, andando de costas, rostos desviados, cobriram a nudez do pai, sem que a vissem. Despertando Noé do seu vinho, soube o que lhe fizera o filho mais moço e disse: Maldito seja Canaã; seja servo dos servos a seus irmãos. E ajuntou: Bendito seja o SENHOR, Deus de Sem; e Canaã lhe seja servo. Engrandeça Deus a Jafé, e habite ele nas tendas de Sem; e Canaã lhe seja servo.” Gênesis 9:18-27

– O que nós vemos aqui?

Noé tinha três filhos: Sem, Cam e Jafé. Noé se embebedou. Cam viu a nudez do seu pai. Noé amaldiçoou Canaã, que era filho de Cam. Noé não amaldiçoou Cam, amaldiçoou o filho de Cam, Canaã.

– Como é que é esse negócio?

Canaã, como nós vamos ver, era o filho mais novo de Cam. Nós vemos isso no capítulo seguinte, o capítulo 10. O capítulo 10 do Gênesis nos apresenta a tabela das nações (ou tábua das nações). Como a tradição bíblica diz que a povoação do mundo recomeçou a partir de Noé, todos os povos que nós conhecemos são descendentes de Noé, tiveram origem a partir de Noé e seus filhos e netos.

“Os filhos de Cam: Cuxe, Mizraim, Pute e Canaã.” Gênesis 10:6

Cam, então, era pai de canaã. Vamos ver um pouco mais adiante:

“Canaã gerou a Sidom, seu primogênito, e a Hete, e aos jebuseus, aos amorreus, aos girgaseus, aos heveus, aos arqueus, aos sineus, aos arvadeus, aos zemareus e aos hamateus; e depois se espalharam as famílias dos cananeus. E o limite dos cananeus foi desde Sidom, indo para Gerar, até Gaza, indo para Sodoma, Gomorra, Admá e Zeboim, até Lasa.” Gênesis 10:15-19

Eu reproduzi todo esse trecho porque alguns desses povos são citados mais tarde, ao longo da Bíblia. São os povos que foram submetidos ou dizimados pelos semitas, os descendentes de Sem, um dos três filhos de Noé. Os israelitas e os árabes são descendentes de Sem.

Mas vamos lá: Cam viu a nudez de seu pai, mas quem foi amaldiçoado não foi Cam, foi o filho de Cam, Canaã. Por quê?

Para entender isso, só conhecendo a Bíblia. A Bíblia tem uma linguagem figurada, cheia de eufemismos.

Por exemplo: No comecimho do Gênesis, quando Adão mantém relações sexuais com Eva, é dito que Adão “conheceu” Eva. A Bíblia também usa os eufemismos “dormir” significando “morrer” e “levantar” significando o retorno do espírito ao plano astral ou o seu retorno ao plano físico, ou seja, a reencarnação.

Aqui nós encontramos um eufemismo que é a chave do mistério.

Nós vimos que Cam “viu a nudez do seu pai”. “Ver a nudez” ou “descobrir a nudez” é um eufemismo que designa a intimidade sexual, as relações sexuais. É o que nós vemos em Levítico 20:17-21:

“Se um homem tomar a sua irmã, filha de seu pai ou filha de sua mãe, e vir a nudez dela, e ela vir a dele, torpeza é; portanto, serão eliminados na presença dos filhos do seu povo; descobriu a nudez de sua irmã; levará sobre si a sua iniquidade. Se um homem se deitar com mulher no tempo da enfermidade dela e lhe descobrir a nudez, descobrindo a sua fonte, e ela descobrir a fonte do seu sangue, ambos serão eliminados do meio do seu povo. Também a nudez da irmã de tua mãe ou da irmã de teu pai não descobrirás; porquanto descobriu a nudez da sua parenta, sobre si levarão a sua iniqüidade. Também se um homem se deitar com a sua tia, descobriu a nudez de seu tio; seu pecado sobre si levarão; morrerão sem filhos. Se um homem tomar a mulher de seu irmão, imundícia é; descobriu a nudez de seu irmão; ficarão sem filhos.”

Cam viu a nudez do seu pai. Podemos ter a impressão, então, de que Cam aproveitou que seu pai estava bêbado, talvez inconsciente ou quase inconsciente, e manteve uma relação homossexual com ele. Essa tese é defendida por alguns estudiosos. Elas se apoiam, ainda, no fato de que entre os canaanitas, descendentes de Canaã, que foi amaldiçoado, havia práticas homossexuais, como em Sodoma e Gomorra.

Mas não foi isso que aconteceu. Aliás, isso não justificaria o fato de Canaã ser amaldiçoado no lugar do seu pai.

A chave está em Levítico 18:7-8:

“Não descobrirás a nudez de teu pai e de tua mãe; ela é tua mãe; não lhe descobrirás a nudez. Não descobrirás a nudez da mulher de teu pai; é nudez de teu pai.”

Aqui fica tudo esclarecido: “Não descobrirás a nudez da mulher de teu pai; é nudez de teu pai.” – A nudez da mulher do pai é nudez do pai – ou seja, essa nudez, essa intimidade pertence ao pai: a mulher pertencia ao homem.

Cam, então, não manteve relações sexuais com Noé, que era seu pai. Ele manteve relações com a mulher do seu pai – sua própria mãe – e por isso a maldição coube a Canaã e não a Cam. Canaã é fruto da relação de Cam com a sua própria mãe.

– Mas onde é que entram os negros nessa história?

Cam quer dizer “quente”, “queimado”, “escuro”. De acordo com a Bíblia, os negros são descendentes de Cam. Vários povos que são citados na Bíblia são povos negros, e todos eles descendem de Cam. Apenas um exemplo: Em Salmos 68:31 é dito que “(…) a Etiópia corre a estender mãos cheias para Deus.” – A palavra hebraica que é traduzida como Etiópia é Cuxe, que é o nome do ancestral não só dos etíopes como dos demais negros.

Esses povos não foram amaldiçoados. Os descendentes dos outros filhos de Cam (Cuxe, Mizraim e Pute) não foram amaldiçoados – só os descendentes de Canaã, e esses foram exterminados, não existem mais. Não há nenhum fundamento, então, para dizer que os negros são amaldiçoados na Bíblia. Isso encerra a questão.

***

Fica uma questão, que já não tem nada a ver com a falsa maldição sobre os negros, mas que também é muito interessante:

Quem pecou (ou quem errou; pecado quer dizer erro) foi Cam: como é que a maldição recai sobre Canaã, que não tem nada a ver com o erro do seu pai?

 – Uma coisa tem que ficar bem clara! Isso aqui é mito, não é História! É um mito que tenta nos explicar coisas importantes sobre a humanidade, suas origens, seus comportamentos e sua relação com Deus.

Mas vamos fazer de conta que isso aconteceu assim como nos é contado para tentarmos compreender a lógica do autor. Isso foi escrito por alguém, e esse alguém quer nos ensinar sobre Deus.

– Um filho paga pelos pecados do seu pai?

A maioria dos cristãos acha que sim. Eles se baseiam principalmente em Êxodo 20:5:

“(…) eu sou o SENHOR, teu Deus, Deus zeloso, que visito a iniquidade dos pais nos filhos até à terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem (…)”

Precisamos esclarecer que “pais”, na linguagem bíblica, tanto se refere ao pai e à mãe quanto aos antepassados – assim como “filho” tanto se refere à prole direta quanto aos descendentes.

A Vulgata Latina, a tradução da Bíblia para o latim feita por São Jerônimo na virada do século IV para o século V, de onde surgiram as primeiras traduções para o português, traduz essa passagem do Êxodo assim:

 “Non adorabis ea neque coles ego sum Dominus Deus tuus fortis zelotes visitans iniquitatem patrum in filiis in tertiam et quartam generationem eorum qui oderunt me”.

“(…) in tertiam et quartam (…)”, ou seja, na terceira e quarta. A preposição latina in quer dizer “em”, e não “até”. “Até a terceira e quarta” é uma tradução tendenciosa. O correto é “na terceira e quarta”. Jesus nos ensinou “a cada um segundo as suas obras” (Mateus 16:27). Deus não seria justo se fizesse uma pessoa pagar pelos erros de outra. Isso pode acontecer (e acontece) devido às imperfeições e às mentiras dos homens, mas Deus não tem nada a ver com isso.

Vivemos, ainda, num planeta de provas e expiações. Se analisarmos o passado da pessoa que hoje é injustiçada (no caso em questão, Canaã), remontando às suas existências anteriores, quase sempre ela foi injusta com alguém, ela cometeu injustiças semelhantes às que experimenta agora. Colhemos o que plantamos, sempre. O que não colhemos numa mesma existência, colheremos numa existência posterior.

Através da reencarnação Deus nos proporciona oportunidade de reparar o mal que praticamos. Não somos castigados, não existe castigo divino – pelo menos não da maneira como vulgarmente entendemos a palavra “castigo”.

“Castigo” vem do latim castus, que quer dizer “puro”. “Castigar”, do latim castificare, é “purificar”, “tornar puro”. Deus age através das Suas Leis, perfeitas e imutáveis. As Leis de Deus estão gravadas em nossa consciência. Tudo o que sentimos, pensamos, falamos e fazemos fica gravado em nosso subconsciente. Como disse Jesus, “até os fios de cabelo de nossa cabeça estão todos contados” (Mateus 10:30).

Podemos nos esconder da lei, da justiça, dos homens, mas não podemos nos esconder da nossa própria consciência. As Leis de Deus, que estão gravadas em nossa consciência, nos conduzem, mais cedo ou mais tarde, à reparação do mal que causamos.

Se não nos dispusermos a reparar o mal causado, ou seja, se não aprendemos com os erros, experimentamos a dor.

Nem todos precisam experimentar a dor. O caminho das Leis de Deus é uma reta. Sempre que nos desviamos do caminho reto das Leis de Deus, enveredando por desvios e atalhos, somos alertados pela dor de que devemos voltar ao caminho. Se, quando erramos, percebemos nosso erro e prontamente nos disponibilizamos a repará-lo, não há necessidade da dor.

Falávamos da passagem do Êxodo que diz que os filhos pagam pelos erros dos pais na terceira e quarta geração. Nós somos espíritos; os nossos entes queridos que já morreram são espíritos. Nós somos espíritos encarnados, estamos temporariamente revestidos de um corpo de carne; eles são espíritos desencarnados, não têm esse corpo. Mas todos somos espíritos.

Os espíritos formam grandes grupos – famílias espirituais que evoluem em conjunto reencarnando próximos uns dos outros nos mais diversos papeis. Reencarnamos no meio em que tivermos vínculos. Depois que morrermos, e, passado um certo tempo, tivermos que reencarnar de novo, vimos novamente a este plano material através de um meio espiritual com que tenhamos mais afinidade, seja ele composto por afetos ou desafetos.

Formamos vínculos através de laços de amor e ódio. Quando reencarnarmos procuraremos dar continuidade às tarefas que iniciamos nesta existência. E o lugar mais apropriado para isso é entre o grupo espiritual a que estamos vinculados. Iremos renascer, então, como netos ou bisnetos dos nossos filhos, ou seja, na terceira ou quarta geração depois de nós.

Se eu reencarnar como meu bisneto, este bisneto vai ter muitas características minhas, eventualmente vai demonstrar as mesmas aptidões que eu, e, se for o caso, vai “pagar”, por algum erro mais grave que eu tenha cometido nesta atual existência. E não há nada de injusto nisso, pelo contrário. Ele é eu. Sou eu reencarnado, somos o mesmo espírito.

Isso se aplica a Canaã. A maldição recaiu sobre ele pelo fato de ele ser o fruto do pecado cometido por seu pai, Cam. Mas “Canaã” representa um povo, não apenas uma pessoa. A maldição recaiu, realmente, sobre os descendentes de Canaã, que mais tarde foram exterminados pelos israelitas (descendentes de Sem).

Pela lógica da reencarnação, o povo de Canaã recebeu Cam como um dos seus membros e um grande grupo de espíritos que tinham afinidade com ele.

Esse é o entendimento proporcionado pelo conhecimento espírita. Mas podemos entender de outra forma, mais ampla e profunda, que pode, ao mesmo tempo, ser aceita pelos não-espíritas e pelos espíritas:

Noé representa o tronco da humanidade que nós conhecemos – um grande grupo de espíritos marcado por um passado de culpas.

Noé é o tronco a partir do qual cresceram três ramos principais: Sem Cam e Jafé. Um desses ramos, Cam, degenerou. A própria natureza de Noé, que descendia de um passado de culpas, exteriorizou a sua parte degenerada no ramo de Cam. Esse ramo, depois crescer e se espalhar, foi exterminado por outro ramo, o de Sem: exatamente como um ramo que, sob o peso de outro, enfraquece, apodrece, seca e cai.

A tendência da humanidade, como a de todos nós, individualmente, é essa. As nossas características degeneradas serão aos poucos exterminadas pelas nossas características sãs, que estão de acordo com os códigos da Vida – as Leis de Deus.

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