Consideração sobre o Dia da Consciência Negra pelo ângulo do Espiritismo.
O Dia da Consciência Negra marca a história do escravo Zumbi dos Palmares. Zumbi foi capturado e morto em 1695, aos 40 anos. Nasceu em Palmares, atual Estado de Alagoas, e se tornou conhecido quando tinha 25 anos de idade ao liderar a comunidade que ficou famosa como Quilombo dos Palmares. Era uma comunidade livre formada por escravos fugidos de engenhos de açúcar.
Zumbi e esta data se tornaram símbolos de resistência à opressão. Resistência às tentativas de aniquilamento de seus valores africanos. Sei que muitos temas são debatidos em função desta data: a inserção do negro no mercado de trabalho, as cotas universitárias, a discriminação.
Mas não há como passar por esta data sem lembrar da escravidão. Minha geração não aprendeu quase nada sobre o negro na escola. O assunto-base era sempre a escravidão. Na faculdade de História este tema persistiu, sob diferentes abordagens.
O Brasil que conhecemos ainda é o Brasil construído a braço negro. As antigas edificações, a visão preconceituosa em relação a certos trabalhos, a estrutura organizacional do Brasil é herança direta de um tempo que, por muito tempo ainda, vai cobrar seu preço.
É evidente que os milhões de espíritos envolvidos diretamente na escravidão continuam por aqui. Africanos que eram caçados na sua terra aos quinze ou dezesseis anos, assim que a musculatura aguentasse o trabalho pesado, eram arrastados para o litoral da África, onde eram vendidos em troca de fumo, aguardente e quinquilharias. Vinham às dezenas, amarrados uns aos outros pelo pescoço, em fétidos porões de navio, comendo pouco e fazendo suas necessidades no mesmo espaço em que dormiam. Muitos morriam no caminho. Ficavam os mais fortes.
Quando desembarcavam eram examinados como se fossem animais; olhavam seus dentes, suas canelas, seus pulsos. Seu destino era as minas, onde hoje é o Estado de Minas Gerais, ou os engenhos de açúcar do Nordeste. Trabalhar até dezoito horas por dia. E a violência, os castigos físicos, a humilhação, a destruição do amor-próprio, a solidão, a total falta de alguém com quem conversar, já que havia várias etnias e dialetos. Sem amor, sem carinho, sem afeto algum, sem sexo, sem prazer de nenhuma espécie, sem nem ao menos ter o consolo de sua religião.
Isso não foi num lugar isolado ou num período curto de tempo. Foram milhões de espíritos durante séculos. Claro que a crueldade não existiu em todos os lugares e que o tratamento dado a eles foi se humanizando aos poucos. Com o tempo muitos negros nasciam em solo brasileiro, e formavam algo parecido com família, e tinham direito a alguma manifestação religiosa. Esse processo de abrandamento das relações está em pleno andamento. Um canetaço da princesa Isabel acabou com a escravidão, mas na espiritualidade as relações continuaram como antes.
Leia sobre a abolição da escravatura aqui: Espiritismo e a abolição da escravatura
Se discute, nesta data, a situação do negro na sociedade. Essa é a parte visível. Mas a situação destes espíritos, em muitos casos, é caótica. Muitos não conseguem perdoar, não conseguem se desfazer do ódio. Isso gera violência urbana e conflitos espirituais graves.
Séculos de sofrimento não se apagam facilmente. Os escravos, os capatazes, os capitães do mato, os religiosos coniventes, as sinhás e os senhores de escravos estão entre nós, em situações que não nos permitem reconhecê-los.
O Brasil carrega a mácula da covardia e da tortura. Durante o regime militar policiais torturavam suspeitos. Aliás, isso foi prática comum no Brasil até há pouco tempo, e de vez em quando ainda se tem notícia de algum fato assim, como a suspeita de que tenham torturado até à morte o ajudante de pedreiro Amarildo e ocultado o seu cadáver.
Me refiro ao Brasil por ser a nossa pátria, o lugar neste planeta em que estamos nos desenvolvendo espiritualmente. Mas nada disso é privilégio brasileiro. Na América do Norte os índios e os mexicanos foram trucidados. Na Roma Antiga os primeiros cristãos, durante séculos, foram perseguidos e mortos brutalmente.
No Brasil se discute, e com razão, os males sociais, econômicos e morais que atravessamos. Mas o mal maior é o espiritual. É urgente o perdão entre todos os envolvidos nesta grande tragédia brasileira. É preciso conscientização de que é possível recomeçar, que todos erramos, que não existem inocentes, que os papéis de carrasco e vítima se invertem, que o perseguidor de hoje é o perseguido de ontem, e que só o perdão é capaz de colocar um fim nesta saga infrutífera.
Sou otimista em relação ao Brasil. Sei que anos difíceis, em termos morais, nos aguardam. A banalização do sexo, focos de violência selvagem, a ausência de valores e as experimentações de todo tipo ainda não alcançaram o seu auge. Mas depois vem a calmaria. Então não haverá necessidade de “Dias da Consciência Negra”, “Dias do Índio”, cotas raciais, porque essas separações já não existirão.
Por enquanto…
Que o negro goste de estar negro, que olhe para os seus antepassados com carinho e admiração por terem suportado tamanhas dificuldades. Que aproveite essa existência num corpo negro e as experiências que isso pode proporcionar.